quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Corte no teatropoa.blogspot.com


Um corte que não interrompe
Sem querer dar uma de “cabeção”, achei que valia a pena falar de Júlio Plaza, distinto senhor que não saiu da minha “cabeça” na platéia de “Corte”. O artista espanhol falecido em 2003 desenvolveu uma pesquisa sobre multimeios que, em muito, dialoga com o trabalho do Grupo Jogo de Cena. Aqui fico pensando se é porque o espetáculo inclui em sua proposta uma conversa em que participam elementos audiovisuais, além da recuperação de personagens clássicos da dramaturgia num espetáculo, artificialmente falando, “de dança”. Mas proponho que não. É justamente nesse incluir que Décio Antunes se afasta de Plaza. A proximidade está no eixo.
Citando Walter Benjamin, Plaza propõe que imaginemos duas formas de encarar a história. Na primeira delas, cada momento histórico (e é partindo do momento histórico atual que Décio Antunes estabelece a sua narrativa) funciona como uma linha horizontal. Nesse caso, olhar para o passado é como se tivéssemos várias linhas horizontais umas em cima das outras, o que justifica o termo historiografia. Pensar o passado, com olhos firmes no presente, é como pegar uma faca bem afiada e cortar essas linhas ao meio num movimento vertical que possibilita a reflexão sobre os cortes.
O outro modo de ver a história é observá-la como constelar. Cada momento da história ocupa, nessa idéia, exatamente o lugar do momento anterior e, ao invés de linhas horizontais, temos sistemas palimpséticos. O passado, assim, se completa no presente e no futuro e está, portanto, vivo. O presente, que já é passado no ato da reflexão, possui o passado em segundo plano. O futuro ressignifica o passado, não como mero simulacro como faz a moda, que se utiliza do ontem como objeto de construção de um falso novo, mas como a arte e a filosofia que produzem novos olhares a partir dos novos desafios. Ver a história com olhos de historicidade me parece ser o eixo de “Corte”.
O ponto alto da peça, quando o sistema proposto por Antunes se torna uno, é quando os atores-bailarinos entram com pedaços de manequins, já no início. Pedaços, cortes, retalhos. O cenário é composto de trechos de carros, peças de imagens, rampas que não se concluem, buracos negros. A luz de Bathista Freire e Guto Greca proporciona ao encenador e ao seu público espaços ricos em significação. O figurino de Coca Serpa é indicial: aponta para o além, indica, mostra sem ser mostrado. As peças, nesse cenário de Felix Bressan de que fazem parte também os sete atores (e sete é o número da perfeição), acrescentam significados, com também os vídeos, esses compostos por trechos, retalhos de cenas.
O ponto baixo da peça é o que chamamos de espetáculo. Se tudo aquilo que é plástico é base significativa rica em informação e forma a lente através da qual estamos aptos a olhar o homem, não como produto de seu passado, nem como semente do seu futuro, mas como carregado tanto de si ontem, como de si amanhã, não é na encenação que se estabelece a reflexão. Décio Antunes pára na preparação e deixa de dar, com poucas exceções, o passo adiante.
Na tela vemos imagens de 11 de setembro. Uma atriz veste-se com bombas e joga-se num buraco. 1 + 1 = 1, no teatro.A narração fala sobre estar frio.
Uma geladeira entra em cena e dela sai uma mulher.
Uma atriz de vermelho entra limpando incessantemente as mãos de algo que não sai. Num inglês que nem de longe parece ser orgânico, ela cita Lady Macbeth.
E, assim, em vários momentos, os elementos concordam entre si além do esperado na narrativa dramática, se tornando monocórdio: um código sujeita-se a outro e pouco se avança além da cena inicial.
Fabiane Severo e Patrick Vargas destacam-se por dar importância à espontaneidade, tão contemporânea à dança. Em suas aparições, os movimentos não se mostram cristalizados, como ocorre várias vezes com seus colegas, mas produzem o sentido do existir, do aqui agora performático em cujo acontecimento está a razão para o vínculo palco e platéia. Como os elementos plásticos, o olhar desses dois intérpretes apontam, jogam a reflexão para o olhar do público, tarefa essa cerne para o pós-dramático de Lehmann.
Assim, Décio Antunes se distancia de Plaza por construir um espetáculo que, em seus bons momentos, se fecha em si, concordando consigo mesmo num excesso de coerência para o que se espera da dança hoje. Mas se aproxima do artista espanhol no momento em que traz à cena da capital gaúcha uma reflexão historicista (e não historiográfica) a partir um espetáculo cheio de belas imagens.
“com vida o corpo se erguefaz rolar a pedra, sempre a mesmapara cima do montesempre o mesmo”
**Concepção de Direção: Décio Antunes
Coreografias: Maria Waleska Van Helden
Música: Flávio Silveira e pesquisa de Décio Antunes, Fabiane Severo e Maria Waleska
ELENCO:
Cristina Camps
Fabiane Severo
Graziela Silveira
Maria Albers
Patrick Vargas
Robson Duarte
Stela Menezes
Narração: Nelson Diniz
Figurino: Coca Serpa
Cenário: Felix Bressan
Luz: Bathista Freire e Guto Greca
Fotografias: Carlos Sillero
Projeto Gráfico: Liege Grandi
Produção Audiovisual:Camila Vieira e Cristiano Oliveira (conceito, pesquisa e edição)
Luini Nerva (produção)
Rodrigo Poyastro (técnica)
Assist. de Produção: Liege Porchetto
Produção: Jogo de Cena
Comentário de Decio Antunes:
Prezado Rodrigo, conheci teu blog pela minha filha Luini e venho aqui saudar tua iniciativa - há uma ausência de "ressonância" aos processos artísticos na cena e tua iniciativa deve ser ressaltada. Faremos teus comentários integrar nosso blog do Corte:espetaculocorte.blogspot.comTuas observações estão muito bem fundamentadas em fontes quando abordas o espetáculo. Discordo, obviamente de observações pontuais - mas o comentário é teu e deve ser respeitado. Contrapor seria fazer tipo aquele sistema de crítica que lê um espetáculo pensando em outro que pretensamente vê.O único ponto essencialmente discordante é tua noção de ponto baixo do espetáculo que é a encenação, uma afirmação contraditória em si quando foi ela que gerou o fôlego de teus comentários. Os outros, queria saber que "dança" pensas quando comentas sobre o espetáculo estar operando sistemas narrativos. Acreditas ainda que existe "uma dança"? Por fim, pelas citações que indicas, para o diálogo fundamental estabelecido pela crítica é muito saudável não haver códigos cifrados de compreensão possível apenas para o crítico. Isso cria uma matéria movediça e instável, que pude - já que visitei teu blog - perceber também em outra críticas tuas. Um abraço e continues, prometes como crítico!
Decio Antunes

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Corte por Daniela Cunha - Jornalista




Corte – Refiro-me à palavra com a sílaba tônica cor pronunciada com o “o” aberto é o espetáculo do grupo Jogo de Cena, concebido e dirigido pelo Décio Antunes, com coreografias de Maria Waleska Van Helden. Como o próprio nome do trabalho, é difícil comentá-lo pela complexidade do que não se vê, mas que está subentendido na obra.


Prato cheio para os intelectuais dessa era, o Corte traz à tona a filosofia, a sociologia, as inquietudes deste século, mas remete também à mitologia grega e a eterna angústia de Sísifo, condenado a “fazer rolar a pedra, sempre a mesma para cima do monte, sempre o mesmo...” Lembra também Edgar Morim e sua teoria do caos e da ordem, típicos desse nosso tempo tão controverso, tão doido e doído e um pouco de Shakespeare em “Ser ou não ser, eis a questão”. O Corte é um pouco de tudo, mas basicamente, mostra a dor desse nosso tempo meio sombrio, violento, fragmentado, aos pedaços.


Tanto faz se o espectador já ouviu falar nos modernos ou pós-modernos ou em gregos e romanos. O Corte escancara um tempo midiático profetizado por Marshall Mc Luhan quando afirmava que “o meio é a mensagem” e introduziu, como um verdadeiro visionário, a terminologia aldeia global. É nosso esse tempo de bits e bytes, de velocidade e vida no ciberespaço. Também é nosso esse tempo sombrio de jovens fundamentalistas que viram homens e mulheres bombas que morrem por uma causa ou são atropelados por aviões em seus ambientes de trabalho. Esse tempo fluido, exposto e escondido está no Corte.


Como um soco no estômago, o espetáculo faz pensar, incomoda. Porém, é na mistura perfeita de elenco e cenário que a esperança pode surgir de algum escombro. É ali entre tonéis e carcaças que ressurge quase como um milagre as presenças de Cristina Camps, Fabiane Severo, Graziela Silveira, Maria Albers, Patrick Vargas, Robson Duarte e Stela Menezes. Eles lembram que a vida pulsa na luz ou na sombra. Se no terceiro milênio estamos atrapalhados com tanto barulho e com um tempo onde as horas pesam, esse tempo é dessa geração. Nossos somos os donos das escolhas, das penumbras, das tempestades, das noites. Temos o desafio de mudar o paradigma, de fazer a revolução e pensar num outro mundo, menos consumista, talvez, mais humanizado, quem sabe.


O Corte é importante pelo que não diz e pelo que não mostra. É fundamental pela falta de alegria, de cor. O Corte pode ser simplesmente o anúncio ou o início de um novo tempo, mais leve, mais consistente, mais viável. O Corte pode ser simplesmente o tempo de ontem, de torres gêmeas desabando, de Bush atordoando, de Bin Laden revidando. O Corte é fundamental pelo que revela e escancara. É a ferida desse nosso tempo ou quem sabe a cicatriz desse mesmo tempo. Contraditório, é o nó nas tripas, a fratura exposta, é o corpo correndo atrás da cabeça e ela em busca do sentido da vida. Um luxo (ou lixo existencial)! Só para variar, Décio e Waleska saem de novo do lugar comum e arrasam, sem cortes. Bravo!


Daniela Cunha - Jornalista


danielacunha@terra.com.br