terça-feira, 12 de maio de 2009

Comentários de Marilu Goulart sobre a pré-estreia do dia 8


CORTE
Corte causa dor. Tudo se passa na superfície. Não há profundidade, moral, nem história. Apenas fluxos que produzem encontros e evidenciam solidões. Um estar só no mundo. Mundo frio, cru, tecnológico, onde, por vezes, uma suavidade invade o ambiente e transforma os corpos. A música habita este mundo de sonâmbulos: corpos oprimidos pelas formas-formalidades já não conseguem seguir/fazer os rituais próprios da cultura. Uma gravata pode compor o vestuário e pode também ser um instrumento de morte, por vezes, lenta. Corpos desarticulados, das sempre mesmas formas de viver e se relacionar, são arrastados em cena e desfilam sob nossos olhos doloridos. Em corte, há uma ausência de culpa, certamente pela ausência de qualquer transcendência. Tudo é imanente, não há nada por trás, uma verdade a ser descoberta, uma moral da história, ou mesmo qualquer simbolismo ou metáfora. Um corte no tempo: e quem assiste não é mais expectador. Sente a dor de estar exposto na sua humanidade sem perspectiva de uma forma definida. Corte acorda por 50 minutos do sonambulismo em que se vive. Não há mais esperança. Porque não há futuro. Não há história. Há um narrador. E o ponto de vista é a nova comédia que substituiu Deus. As intensidades invadem os corpos. Não há segunda aposta. Todas as fichas numa única jogada. Ou nada. O que tem de esperança em Corte é a ausência da relação desta com o futuro. O tempo é da ordem do imediato. Não há dicotomias. Nem julgamento (de valores). O que dá certo alívio na exposição de tanta crueza é a possibilidade concreta de uma nova forma de liberdade. De experimentação da vida. Desde que se abra mão das certezas e se abra o corpo para as intensidades, quase sempre violentas, da vida. Nem boa nem má, necessária para que se imploda este corpo sonâmbulo, esta insônia agonizante. E se produza um corpo não organismo, não organizado. Que saiba se relacionar com o mundo nesta multiplicidade de partes que somos e que ele é. E produzir encontros. Corte abre uma ferida. Bem no meio de nossa humanidade carcomida pelo mesmo. Não propõem nenhum modelo. Nem permite um passo atrás. Esta é sua violência. E talvez sua única dicotomia: permanecemos sonâmbulos, ou nos permitimos sermos atingidos pelos punctuns. Sobre o figurino, comentei sobre sua beleza e ouvi que, ele de bonito, rouba a cena. Eu, que não entendo nada disto, só posso dizer que gostei. Ao meu lado meu filho de 10 anos, a certa altura me disse: “mãe, não tô entendendo nada”. Isto não me causou surpresa. Me fez pensar na educação. Mas não vou entrar nesta questão. Sempre se espera, afinal, a moral da história, um enredo, alguma linearidade que nos oriente. Pensei “ainda há tempo, sempre haverá”. Em corte, há espaço para o pensamento (na educação não), pois há espaço para a dúvida, a angústia, a incerteza, a sensibilidade, a música... Não é, porém, um espetáculo para ser visto uma única vez. A forma está em questão e o estilo (enquanto existência) precisa ser repensado. Desta vez, a primeira, é o que tenho a dizer.

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